Carta ao Deserto
I
João, o Evangelista, viu tudo de Patmos
viu onde tudo terminaria e onde tudo começaria
de novo pois assim são as coisas que permanecem:
pensam que passam, que vão embora
para voltarem a lugar nenhum, a um lugar
onde tudo é tudo até mesmo o nada.
Mas onde está este lugar?
Onde existiria este território que nos protegerá
das catástrofes, dos terremotos, das pestes
a nos atacarem junto com o fogo, a água a queimar
o nosso vapor feito de sangue e a nossa pele
de espuma?
II
Tu que ris da tragédia alheia, João sorridente,
sabes onde tudo isto fará sentido?, perguntei.
Tudo fará sentido, foi o que o Evangelista me respondeu.
Sentido é o que une as pontas soltas,
as mortes atrozes, as dores infinitas,
a corrosão da alma, o fracasso do espírito
neste mundo necessitado de fatos falsos, como os
milagres.
Sentido é o que não aparece
entre o passado e o futuro.
Sentido seria o presente
se o presente fosse eterno
e o eterno se fingisse de presente.
O Sentido está no eterno à espera
do presente momento
deste
verso.
III
Um perde a mulher e racha a cabeça
o outro perde os pais e os cinco irmãos
outros dois são mortos à toa por uma bala
uma mulher sobrevive a um terremoto
e dá luz — três horas depois — uma
criança de
destino
incerto —
tão incerto como o resto dos homens.
Onde está o Sentido?
Onde está a Revelação tão prometida
por João em Patmos?
Pastores ingênuos visitam a ilha
e têm as mesmas visões do Evangelista —
provas do spiritus mundi?
Onde estamos?
Onde estás?
Onde?
Um lugar não é a resposta.
Não há lugares onde o Evangelista nos conforta.
Não há sequer o tempo.
Sequer a tal da Revelação.
Há apenas nascimento e morte,
morte e nascimento,
separados por duas estrelas, duas portas,
duas colunas, duas saídas.
Na caverna de Patmos, ninguém percebeu
que o Evangelista ainda está lá
e ainda está aqui.
Em Patmos, não há lugares:
há somente os recém-nascidos.
IV
Ainda estou no meu terceiro nascimento,
mas já me preparo para o quarto.
Estará lá o meu Sentido? — A minha Revelação?
Desconheço:
estar revelado é justamente não saber
não estar preparado para o nada
e preparar-se para o sempre.
Estar revelado é abrir o Sentido como
uma carta escrita pela esposa e
selada com o beijo agridoce
colhido pelo tempo.
E o Sentido é a Carta;
e a Carta é o Mapa para a saída
para uma porta
para uma coluna
onde o universo
e as estrelas
são as rotas obscuras
rumo ao
centro
rumo ao
coração.
Entre veias e músculos, nervos e epiderme,
o coração pulsa em segredo
sua luz vermelha a se mesclar com o branco
do leite como o fogo e o sol e a lua
todos habitantes
da caverna de Patmos
enquanto o Evangelista escrevia os versos
da Revelação jamais descoberta
exceto para si mesmo
os versos da Carta
escrita para a noiva jamais desvelada
jamais pressentida
a noiva com quem seu coração
nunca repousou.
A noiva sem nome, mas agora revelada:
esta vastidão, este deserto.
V
E lá, quieto, oculto, sussurrante,
o coração bate:
o eco do sangue nos redemoinhos do pó e da areia.
VI
E se chegou ao fim, lembre-se que ele é apenas
o início.
Estamos sempre no início, nunca no fim.
Foi isto o que João, o Evangelista, descobriu em Patmos:
viu o coração do seu corpo transformar-se
no coração do deserto imerso na desordem
disfarçado de ordem para aqueles que ainda procuram
um lugar.
Todos nós somos órfãos; todos nós somos náufragos.
A Revelação e o Sentido
estão em procurar e encontrar
o Caminho.
O Fim é o Início,
e o Início é
a Encarnação.
Mas até lá procuraremos pelo lugar
e esperaremos que, algum dia,
ele será descoberto.
Pois se quem procura acha, saberá que
até no deserto
acontece sempre
o milagre.