Evocação ao Exílio

Martim Vasques da Cunha
4 min readJun 16, 2017

--

James Joyce oferecendo um cigarro a seu neto. (Imagem retirada do blog “Um carro capota na lua”, de Tadeu S.)

A linha do horizonte era clara e límpida, delimitava o mundo, a Irlanda e toda a praia de Sandycove, e um veleiro passava lentamente no mar quando James Augustine Joyce cortou o ar com seu polegar, ao fazer uma cruz. O vento batia calmo no seu rosto naquele dia 16 de junho de 1904 e a Martello Tower — o pior lugar de toda a região de Dublin para se morar — cheirava a uma umidade que não tinha nenhum charme.

Seus olhos não estavam muito bons e seus dentes doíam. Vestiu sua melhor roupa e apoiava-se delicadamente na bengala que comprara há alguns meses. Tinha apenas 22 anos e já se considerava um amigo dos enigmas, um construtor dos labirintos. Gogarty, seu colega de quarto, apelidava-o de “Dedalus” e zombava de sua estranha teoria em que provava, algebricamente, que Shakespeare era o pai de Hamlet e Hamlet ao mesmo tempo. Zombava também por seu ódio por Dublin, uma cidade cheia de paralisados, de vermes que não sabem se mover.

Mas naquela manhã Joyce não queria pensar em Gogarty. Ao acordar, escutou três palavras que o agarraram pelo pescoço. De onde vieram? Quem falou aquilo? Anotou-as rapidamente no seu caderninho de epifanias. O que significavam aquelas três palavras?, meditava ele ao contemplar o mar e aquela cristalina linha do horizonte. Havia outra coisa a se pensar — a moça de Galway. Nora.

Encontraria-se com ela hoje à noite. Sem dúvida, uma moça jeitosa: boas pernas, bom busto, uns olhos que iluminavam o que ficava para trás. E o que ficaria para trás? Dublin? A Irlanda? A História que queria escapar como um pesadelo? Nora. Um nome que soava permanência, estabilidade. E qual é o irlandês que gosta de estabilidade? Nora. Um belo nome. Uns belos olhos. O que ele deveria com os seus olhos míopes e os dentes estragados? O vento soprava para onde queria e Joyce resolveu ir embora da torre.

Desceu as escadas, cumprimentou Gogarty (“Olá, jesuíta imundo”, ele disse), tomou um copo de leite para fingir que era um desjejum. Entregou à velha leiteira (que ficou surpreendentemente quieta, a observá-lo com seu olho de vidro cor branca, fitando o rosto magro dele) as poucas moedas que tinha no bolso da calça. As três palavras — qual era o significado delas? Poderia perguntar a Gogarty, mas ele também não saberia responder. Estendeu a bengala e despediu-se.

Tenho que ir embora de Dublin. Quem iria comigo? Nora. A praia já estava ocupada, crianças brincando, pais olhavam seus filhotes a se preparar para atingir uma vida adulta algum dia, quem sabe. A possibilidade das possibilidades. Viu duas irmãs a brincarem com dois bebês e uma enorme bola colorida que rolava para lá e para cá, quase chegando à praia. Em cima de uma pequena colina, havia uma terceira dama, que observava as outras e encarou Joyce. Ele apertou a vista, o que lhe causava pontadas agudas na gengiva, e viu que, com uma clara dificuldade, que os olhos dela eram muito parecidos com os de Nora. Seria Nora? Não, não era. Os olhos continuavam a fitar o rapaz e o que se estabeleceu foi uma modesta paralisia de tudo que rodeava a praia de Sandycove e tudo que rodeava aqueles dois seres, em que presente, passado e futuro se misturavam e formavam uma perpétua abstração. Sim, eu sei o que significa as três palavras, a moça disse em silêncio. Elas serão aquilo pelo qual você deverá se guiar para criar o seu próprio continente, o seu próprio mundo, a sua própria História. Elas serão a arma que o ajudará a se libertar da consciência fraca da sua raça e dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Elas serão o destino. O seu destino.

Uma criança gritou e uma gaivota atravessou o ar. De repente, não se olhavam mais. A moça foi embora, não virou para trás. Ele tirou o caderninho e leu as três palavras. Silêncio, exílio e astúcia. O seu destino. O destino de todos que estavam ao seu redor. Silêncio, exílio e astúcia. Nora — este foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça. Os olhos dela iluminavam tudo que encontrava, cada passo da trilha, cada trilha do seu passo. Girou em direção ao mar e, com a ponta da bengala, escreveu na areia: I AM. Silêncio, exílio e astúcia — a santíssima trindade da fuga e do engenho. E então James Joyce começou a sorrir e andar, subindo em direção a Dublin, para se encontrar com Nora Barnacle, camareira de Galway e sua futura companheira, ouvindo as ondas que se chocavam contra as pedras, pronto para aplicar seu espírito a artes desconhecidas e proteger-se do grito do frio que todos — as crianças, os pais das crianças, os futuros filhos destas mesmas crianças — começariam a respirar em breve.

XVI-V-MMXVII

M.V.C.

S.D.G.

[Se você quiser saber mais sobre James Joyce, não deixe de ler este texto aqui]

--

--

Martim Vasques da Cunha
Martim Vasques da Cunha

Written by Martim Vasques da Cunha

“My task which I am trying to achieve is, by the power of the written word, to make you hear, to make you feel — it is, before all, to make you see”. J. Conrad

No responses yet