O Corpo de Deus (um apólogo)
What are the stars but points in the body of God where we insert the healing needles of our terror and longing?
Thomas Pynchon
Um mendigo dormia nas escadas de uma igreja. De súbito, acordou com umas vozes estranhas e uns passos sussurrantes. Abriu os olhos e viu um homem alto, empertigado, a cabeça fitando com a mente o céu fixo, repleto de estrelas. Observou o sujeito mais atentamente e percebeu que ele falava sozinho. Não era uma voz nítida — parecia um murmúrio trôpego. O mendigo se aproximou devagarinho para saber o que ele dizia — afinal de contas, a noite estava amena de acontecimentos, e talvez uma pilhéria pudesse atenuar a ruína de sua vida. Resolveu, então, perguntar-lhe o que estava fazendo ao relento naquele horário da noite.
— Ora, estou a olhar as estrelas — respondeu o homem.
— E daí? — disse o mendigo — Eu as vejo todas as noites.
— Ah… mas hoje elas são especiais…
O mendigo não era versado em filosofia, é verdade, mas a dura experiência das coisas permitiu-lhe desenvolver o faro de que se duas pessoas discordam de um fato, logo uma delas estava errada — e não seria ele quem cometeria o equívoco, pois quem conhecia mais das estrelas, da sua imobilidade e fixidez, indiferença e iluminação, senão este nobre locatário do degrau quinze de uma igreja do centro, onde o céu era o teto, a pedra era o cobertor e a cruz um afiado travesseiro? Sentindo-se afrontado pelo homem em seus conhecimentos de astronomia (e, quiçá, de astrologia), decidiu perguntar mais uma vez:
— Por que são especiais? Por acaso tu ganhastes na loteria?
— Ah, sim… ganhei na loteria… na loteria do poder.
Ao ver que o homem tinha os olhos faiscantes ao soletrar a palavra “poder”, jogou mais uma isca:
— E como tu ganhastes nesta loteria?
Pela primeira vez, o homem mostrou seu rosto: era magro e pontudo no queixo, o nariz meio encurvado, a barba bem aparada. Ele sorria:
— Ah, foi muito simples. Tão simples que eu nem tive de vender a minha alma ao Diabo ou coisa parecida. Aliás, para quê acreditar no Diabo? Mas foi assim: um belo dia, eu quis ser parte desta loteria, e depois de muita luta, muita persistência, consegui. Demorou, mas consegui. Subi as montanhas mais sinuosas da Terra! Tive inimigos, inúmeros, que me acusaram das mais abomináveis mentiras. Atravessei-os todos de maneira implacável. Tive traidores que também aprenderam suas lições sem sentir o gosto do perdão, porque, para se dar o perdão, precisamos fazer um julgamento das coisas, e o julgamento nos destrói. Para se conseguir o que se quer, não se pode ficar dilacerado entre o Bem e o Mal. O que importa apenas é a justiça, cega, impenetrável. Por isso que não acredito no Diabo — já Deus… bem, Deus é uma mera circunstância da vida. Aprende-se a suportá-lo como se não tivesse outra coisa melhor. Afinal de contas, foi ele quem criou este céu, mas também foi ele quem te criou, não foi, pobre rapaz? (Nesse ponto, o mendigo não podia deixar de concordar, e fez isso com um muxoxo.)
“Agora, como ganhei nessa loteria tão complicada, tão restrita a poucos? Muito simples: disse a todos que defendia gente como você. Isso mesmo, como você, pobre rapaz, você que vê as estrelas todos os dias, mas não pode compreendê-las. E a culpa era de quem? De Deus, é claro! Mas notes bem, percebas o detalhe deste pequeno truque: nunca diga que é Deus que fez isso contigo. Deus é muito abstrato. Vou dar-te uma lição de vida: disfarce Deus sob o nome de História, e bote toda a culpa nela. Depois, tu coloques um intermediário, que pode ser o Governo, e é aqui que nós entramos: eu digo que quero entrar no Governo para resolver o que Deus não resolveu. Compreendes a genialidade do negócio? O povo aceita isso porque é mais fácil, é mais fácil do que eles se esforçarem para resolverem seus próprios problemas. Querem que outros façam o que não têm coragem de fazer. É por isso que ganhei na loteria do poder: é o meu momento de tentar resolver os problemas que Deus nos deu como maldição. Agora, tudo está ao meu dispor, na ponta dos dedos, e as montanhas que me pareciam tão longínquas, agora estão tão perto… A única coisa que não posso alcançar são estas estrelas, é este céu, e mesmo assim… (O homem acabara de dar um voltarete vertiginoso e sua voz se tornara agitada e aguda, como se sua mente estivesse prestes explodir de tanto orgulho e satisfação) Mesmo assim, nada pode me deter. Eu ganhei na loteria do poder, entendes? Nem este céu que permanece desde dos tempos de Ulisses, tão imperativo quanto aquelas montanhas que impediam a minha vitória — nem este céu pode me deter”.
O homem parou de gesticular e, num gesto de desafio, gargalhou aos brados para o alto:
— Afinal, tu não me hás de cair em cima!
E o mendigo apenas fungou o nariz:
— E nem tu hás de escalá-lo.
Dito isso, ele cobriu-se com os cascalhos e voltou a dormir.
(Inspirado no capítulo XLVI do livro “Quincas Borba”, de Machado de Assis.)