O Emblema

Martim Vasques da Cunha
3 min readAug 28, 2018

--

O ser que queremos salvar da morte já está morto.
John Gray, “Em Busca da Imortalidade”.

Todas as coisas passam, ou pensam que passam.
Algumas ficam, por um ódio eterno,
por um medo que não passa, o medo de sentir dor, perda:
os espólios do vento idiota diante da própria vida.

Pois se todas as coisas passam, não deveriam deixar
rastros, marcas e remorsos no mar, na dor, na solidão.
É o que chamamos de vida? Sim, nunca “não”,
se existisse um “talvez” no pastiche do que já foi perdido.

Apenas ilusões. A dor é o que respira realidade.
Todas as coisas passam. Quando terminam?
Incomunicabilidade — o lema. Ter uma bela perda
(se existe): não há beleza alguma nisso.

Acredita-se que a dor, o ódio, a solidão, têm algo de belo.
Devoram-nos sem razão. Todas as coisas passam,
o espírito se despediu há tempos. Esqueceu-se de nos avisar.
O mundo ficou caduco. O que ele sabe?

Sabe algo: roubar, sofrer, odiar — e
amor não faz parte do nosso vocabulário. É um fantasma.
Nada altera este inferno. Todas as coisas passam.
O que sobra? O passado. E o resto é uma intoxicação.

Há, sim, o passado, conforme cada um,
na crença de que ele termina com um ponto
final, na crença de que há um fim, não apenas
o começo. E estamos terminados para ele?

Grande engano. Vamos ver se todas as coisas passam.
Se realmente terminamos com o passado. Se não é
o contrário, como sempre foi. Viver?
A realização dos contrários. Dos remorsos. O triunfo da dor,

a vitória da morte. Porque para todas as coisas passarem,
precisam morrer. Serem esquecidas. O menino
morreu para ser o que é agora: a vida contra-ataca –
e o avesso acontece. Sim, todas as coisas passam.

O que sobra não é o passado; o tempo; o ódio; o remorso;
ou a morte. Resta uma estranha solidão.
Ela nos reconstrói quando as coisas começam a passar
ou pensam que passarão. Uma amarga solidão, semelhante

ao milagre que nos machuca. Uma amiga exigente,
uma tempestade. Uma luta que nos oprime e nos faz olhar —
enfim — para o céu. Claro, claro, todas as coisas passam.
É o que diz a canção, comentam os entendidos em latim,

grego e alemão — mas, e o céu? Sim, o céu, este manto
às vezes azul, às vezes cinza, nos sufoca, nos ampara.
A mão do carinho que te afaga, depois te humilha. O céu.
O céu, por incrível que pareça, permanece. O céu

é o emblema da solidão. O que são essas coisas que passam?
O que faz elas passarem? Um olhar equivocado? Um aperto
de mão desnecessário? Um abraço atrapalhado? Após a
incomunicabilidade, eis aqui o lema do abandono:

um aceno de esperança. Porque todas as coisas passam.
E elas passam diante dos olhos. Todas as coisas passam,
menos a solidão, menos os olhos que a guardam. Olhos
escuros e luminosos; registram cada passo na trilha,

cada trilha do seu passo. Já foram uma vez a companhia
de um sorrisinho banguela, de um charme inocente. Agora
têm uma arcada dentária completa, um ardor diabólico.
Guardam, tal como uma nova arte, o sono tranquilo da

redenção. As coisas passam. Mas parecem que recomeçam
(estão sempre recomeçando). E de novo parecem que passam.
E tudo leva a crer que a canção tinha razão e que este poema
sempre esteve errado. Perderam-se os mesmos olhos

daquela nova arte. Mais uma vez, serão perdidos (de novo)
e para sempre. (Algum dia foram descobertos?)
As coisas passam. Algumas permanecem. A distância
entre tempo e espaço: uma piada de mau gosto. Escreveram

poemas a respeito dos olhos que dormiam
ao lado e que guardavam a redenção. São o resultado da
angústia em empréstimo permanente,
o resultado do que há no espírito de um sobrevivente.

Um enigma, o enigma que poderiam ser, pois não têm medo.
Ou se usam o medo é para impedir a redenção da vida.
Nesta nova arte, resta esperar. O tempo: a prece
para que as coisas não passem. Pois se isto acontecer,

a canção estava correta, estes versos não teriam sentido,
os olhos não terão mais vida, esta arte não
teria sua lógica, e terei somente

o nada.

--

--

Martim Vasques da Cunha
Martim Vasques da Cunha

Written by Martim Vasques da Cunha

“My task which I am trying to achieve is, by the power of the written word, to make you hear, to make you feel — it is, before all, to make you see”. J. Conrad

No responses yet