Rimas do Exílio

Martim Vasques da Cunha
3 min readSep 20, 2017

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TRÊS MULHERES AO SEIO ME ACONCHEGARAM
e suspiraram que, por ora,
aqui não é o lugar onde Amor vigora,
muito menos onde comanda a minha vida.
Se belas parecem e disso se amparam,
onde está o meu senhor nesta hora
em que a luz se esvanece na alma onde mora
a bondade que, tantas vezes, me deu guarida?
É certo que as silhuetas de cada uma parecem sofridas,
mas são apenas sombras e quem se entrega
a elas com a ajuda da ausência se nega
ao poder da beleza na agonia que tudo vale.
O crepúsculo que fale
de sua escuridão tão desejada,
do ódio em que tudo se equivale,
da quimera tão amada,
do verme tratado como amigo
e do deserto dentro de mim que maldigo.

A primeira se pôs a falar longamente:
“Sua mente se esquece
da consciência que falece
na coluna de mármore, cobrindo o pus que houver
da ferida que o espírito sente.
Seu coração se enlanguesce
diante do pranto que desce,
dos véus de chumbo, ocultos em mulheres
de vestidos finos que Amor não quer,
pois a dor não se nega, nem se quer calar,
mas enfrenta com afiado olhar
a outra dor que nenhum mundo sente”.

“Desta reles gente”,
ela continua com sílabas prazeirosas,
“É onde me faço querida e presente,
pois de tão chorosa,
a minha oposta irmã, a Justiça, de tão pobre
sua condição ela me dá o vestido que a recobre”.

Então ela deu a se conhecer
como se a nudez e a dor que a tomaram
fosse um truque para meu senhor e me levaram
a crer que, entre o Bem e o Mal, não há nenhum nome.
De tanto pranto a correr,
o seio dela me aconchegara
no prazer que se perguntara
anos antes, nos dias que me consomem
até hoje, dias em que o nome
de tal condição é calado no rio
do silêncio, onde o poderio
dos covardes seca diante da coragem e dos montes
revestidos de nobreza, em ondas
geradas pelo sopro oculto ao meu lado.
Tua patifaria é o que o pranto esconde
e teu belo corpo gerado
no gelo do rosto em que a clara
do nada foi criada
pela sombra que tudo pára.

Amor reagiu tardo
e, enfim, de semblante molhado
viu que seus dons foram mal-usados
por estas três irmãs apunhaladas
na própria traição, em que o dardo
da soberba destrói o espírito já quebrado.
Mas nisto ele olhou sossegado
e viu também que seus semblantes eram abandonados
pela preguiça amada
no sangue do fraco que, perigando
por estas trilhas onde um senhor sem comando,
deitou as peças latentes
deste relógio inclemente
na sua razão que muitos chamam de tonta,
apesar de ser um permanente
jogo em que a luz desponta
o mínimo para proteger um povo
sem nexo
e sempre à cata de um pecado novo.

E eu que sobrevivo ao som deste trovão divino,
suporto qualquer desconsolo e sofrimento
que precede, nutre e marca o banimento
de uma nobreza minha que só no exílio mereço:
assim quis a mim pelas escolhas
feitas no destino
ou foi este Deus cinzento
que, nas trevas de um momento,
me fez morto, sem a melancolia na qual cresço
nesta terra onde até de saudades careço?
Minha família me foge à vista
e tudo o que me atrista
nesta revolta secreta em que o grave
é a chama que consome leve e suave
o espírito dentro da minha carne
e dos meus ossos.
Se algum dia eu retornar, dêem-me a chave
de uma casa onde posso
sussurrar: “Se isto foi vida,
o que ganhei nesta via arrependida?”.

Canção, como espero não tocar mais as vestes
de meu solo natal que esconde
a mulher que responde
pelo passado remoído e repleto de recusa
contra o demônio que abusa,
vá com alguém dono de um melhor dia
e, como uma amiga, veste-o com a blusa
da espera, alia
o teu seio ao dele e no exposto
sofrer afirme o coração que há no teu rosto.

Pois sabemos que de alegria
o exílio não é feito e se negro
nos parece o fim é porque tal dia
ainda não chegou, exceto se ele for de paz.
Mas banido sou, nesta queda tudo se desfaz,
e se o perdão parece ser o que não erra,
lembre-se que perdoar é também anunciar a guerra.

I/III — MMII

IX — MMVII

M.V.C.
S.D.G.

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Martim Vasques da Cunha
Martim Vasques da Cunha

Written by Martim Vasques da Cunha

“My task which I am trying to achieve is, by the power of the written word, to make you hear, to make you feel — it is, before all, to make you see”. J. Conrad

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