Salmos da Peste

Martim Vasques da Cunha
2 min readApr 8, 2020

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1

Quando tudo parece estar coberto pelas sombras
e teus princípios viram zombarias
nas mãos dos ímpios,
onde estás?
Por que permaneces em silêncio
no teu santo trono?
Contudo, cada luz de sol que emerge
após o manto escuro da noite
prova a tua soberania.
Nosso próprio despertar é um milagre
que somente algo nos sustém.
O mundo está aí e cada dia que passa
é um dia a mais para o vento idiota
a corroer qualquer vestígio de
pureza.
Onde estás, imploro, onde estás?
Mostres a tua ira, a tua justiça, a tua sabedoria
a tua misericórdia.

2

Leio em teu livro,
que tu defendes os justos
e massacras os ímpios.
Pergunto-me em qual categoria
me incluo: se sou um justo
que desconhece a própria maldade,
um ímpio sem qualquer traço de bondade
ou mais um pilantra sujo que te engana
ao ler os versos sagrados e me identificar
(graças à rima pobre) com os bons?
Será que ando em teu caminho?
Será que medito sobre tua lei, dia e noite,
e não apenas na metade de um dia?
Será que, mesmo com minha impureza
quando nasci, posso te ser fiel?
Oro para que tu não me abandones,
que me livre dos meus pecados –
e se minha intenção é te enganar
então reveles o meu erro
e com tua ira
me destruas.

3

Escutai-me, por favor.
Onde começa o teu Mal?
Onde começa o teu Bem?
Podes me ouvir — ou
não queres me escutar?
Podes ouvir os milhares
que suplicam dentro dos teus templos
por um pouco de conforto?
Se duvido do teu poder,
não é por malícia —
e sim porque teu silêncio me aflige.
Aceitas minhas sinceras lacunas,
meus sinceros arrependimentos.
Deverias ser absoluto,
deverias guardar o Bem e o Mal dentro de ti.
Mas não és nosso inimigo?
Tua vontade é para uma salvação
mesmo que para chegar lá
as sombras da dor e da morte
nos atacam sem nenhuma exclusão.

4

Ampares aqueles que morreram
com a incompletude da vida
amarrada no poço da escuridão.
Ampares aqueles que permaneceram
para suportar os mortos que foram
e os próximos que irão.
A tua bondade se mostra
com estranhos caminhos
em que o fogo batiza os incompletos
para chamá-los perto de ti.
Ajude-me a cumprir
minha vida justa.
Ajude os meus queridos a terem
uma vida completa.
Quando chegar a hora deles
que vejam teu filho a segurá-los pela mão
a atravessar junto a porta estreita
dos ressurrectos.
Ajude-me a vencer a morte
e o mundo
para que o meu fim
seja o início
da tua
luz.

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Martim Vasques da Cunha
Martim Vasques da Cunha

Written by Martim Vasques da Cunha

“My task which I am trying to achieve is, by the power of the written word, to make you hear, to make you feel — it is, before all, to make you see”. J. Conrad

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