Tudo está no seu lugar exato

Martim Vasques da Cunha
16 min readNov 30, 2017

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Ninguém soube muito bem como tudo aconteceu, mas o fato é que, em poucos dias, a imagem e o som do combate das duas amigas contaminaram a vizinhança igual a um murmúrio que não tinha como ser impedido e que fazia as pessoas sorrirem entre si; um sorriso de satisfação maliciosa pois o que era transmitido em cada casa, estampado na íris de cada habitante, provava o contrário daquilo que o velho Gerson afirmava todos os dias ao cumprimentar os vizinhos no início da manhã ou no final da tarde, de que ali tudo estava no seu lugar exato e de que ali só havia, sem dúvida, pessoas sobre as quais se podia afirmar que eram tutti buona gente.

O velho Gerson — como todos o chamavam há mais de quarenta anos — era o avô de Simone, a que começou tudo jogando uma cadeira na cabeça de sua melhor amiga, Manoela, e depois resolveu pisoteá-la. Esta era definitivamente a parte favorita do vídeo que todos já tinham visto nas últimas duas semanas — menos para o ancião que caminhava naquelas ruas como se fosse o único pioneiro. É claro que não era: os avós de Manoela, por exemplo, chegaram na mesma época nas redondezas, mas devido ao acaso das contingências biológicas, morreram precocemente, por volta dos cinqüenta anos, deixando seus filhos como os órfãos tíbios de caráter, tradição continuada pela neta, que não sabia o que fazer quando via a amiga caminhar de mãos dadas com o velho Gerson, como se não existisse nenhuma outra família no mundo exceto a dela.

Naquela época, Simone não sabia das angústias de Manoela. Mas também não estava preocupada com isso. Eram amigas desde a infância, quando se conheceram naquilo que se chamava primeira série do colégio. A escola localizava-se nas imediações da vizinhança, de modo que elas podiam ir a pé, sempre acompanhadas pelo avô ou pelos pais. Quem as apresentou foi o próprio Gerson que então já tinha dinheiro suficiente para não trabalhar mais, graças aos bons investimentos feitos em uma empresa que construíra algo então denominado “processador de textos”. “Simone, cumprimente a sua nova amiga, Manoela”, ordenou o velho em um tom terno, é verdade, mas solene o suficiente para a neta reconhecer, naquele mesmo instante, que Manoela teria alguma utilidade no futuro.

O problema, segundo Simone, era que até agora, passados quase trinta anos, não sabia qual era a utilidade de Manoela. A ironia é que Manoela pensava do mesmo modo — mas às avessas: era ela quem se perguntava qual seria a sua utilidade para Simone. Contudo, nem uma nem outra resolveram conversar sobre este assunto. Preferiram ficar em silêncio, como dois túmulos. Se alguém percebesse tal disparidade em seus sentimentos e fizesse alguma pergunta incômoda, ambas negariam. Eram as melhores amigas do mundo — e ponto final, sem discussão e reticências. Compartilhavam confidências sobre os garotos com quem ficavam, liam os mesmos livros, usavam o mesmo estilo de roupas e a mesma maquiagem, almoçavam no domingo na casa de uma ou da outra, dividiam os presentes de aniversário, assistiam juntas ao telejornal e à novela da oito, depois comentavam sobre detalhes da trama e ambas imaginavam como seria se uma delas levasse algum galã para passar a noite em um encontro clandestino.

Só havia uma coisa que não faziam juntas: não iam à mesma igreja. A família de Simone era católica; a de Manoela, protestante. E por isso estranhava a profusão de imagens de santos e de madonnas que havia na casa do velho Gerson, mas o tempo a ajudou a aceitar aquela idiossincrasia da amiga. Manoela não era devota, muito menos Simone. Ambas iam às suas respectivas igrejas apenas para agradar às famílias e ao restante da vizinhança. Queriam bocejar na homilia do padre ou no sermão do pastor, mas não podiam. No caso de Manoela, ninguém a observava, exceto o olho inclemente das outras pessoas que a rodeavam; já no de Simone, havia sempre o velho Gerson, vigilante para que ela cumprisse à risca o aforismo de que naquela vizinhança tudo estava em seu lugar exato e de que ela própria era um exemplo do tutti buona gente.

Isso mudou quando Manoela e Simone resolveram trepar com Donaldo, o vendedor de bíblias. Já eram grandinhas, sem dúvida, tinham cerca de vinte e oito anos, estavam formadas (ambas em Direito), trabalhando (em dois escritórios que ficavam no mesmo prédio) e freqüentavam a mesma academia de ginástica, um ótimo palco para que os homens da vizinhança observassem cada detalhe suado de seus corpos esculpidos em horas e horas de exercícios que, aparentemente, não tinham outro objetivo exceto o de atiçar os machos e as fêmeas da região. Não havia uma pessoa que não comentasse com alguém ao lado sobre alguma roupa que as duas vestiam, sobre o carro que dirigiam, sobre os óculos de sol que usavam para proteger os olhos. Tudo era observado, tudo era discutido nos mínimos detalhes, entre sussurros, para garantir que o provérbio do velho Gerson não fosse contrariado.

Talvez seja por isso que Manoela e Simone não perceberam os cochichos iniciais quando Donaldo apareceu na vizinhança pela primeira vez. Era um dia agradável, o vento penteava a copa das árvores, o sol repousava no teto de cada residência. Ao pisar no solo asfaltado daquele bairro, ninguém poderia imaginar o que ele tinha em mente. A primeira coisa que repararam foi no porte físico: alto, ombros largos, peito estufado, pernas finas. Depois, o rosto: os traços distintos, o nariz bem perfilado, o queixo másculo e quadrado, as orelhas proporcionais, o cabelo escuríssimo, extremamente bem penteado, com o topete manobrado de tal forma que se transformava em uma onda macia que qualquer mulher gostaria de pentear e despentear conforme o seu gosto. Ele carregava as bíblias em uma maleta de couro um tanto envelhecida, mas o próprio homem informava que aquilo era de proposital, porque ela guardava um imenso valor afetivo. Alegava que estava naquele negócio havia muitos anos; já viajara pelo país todo, o mundo inteiro para ser explorado era uma possibilidade que iluminava os seus olhos, e obtinha a mesma reação das pessoas com quem conversava a respeito, o mundo, meus amigos, era o que começava a dizer às poucas pessoas que ainda se lembravam de toda a história, o mundo não era mais um problema, não era mais um limite, era o próprio céu, e se o céu é o limite, como diziam os meus avós, então imaginem o que nos espera no futuro. Era exatamente isso o que ele vendia: junto com suas bíblias — todas impecáveis, com capa preta de couro, a cruz dourada avisando de sua preciosidade, a tipografia das letras amaciando as ambigüidades da Palavra de Deus aos olhos sofridos de cada leitor, o cheiro das páginas finas e brancas que envolviam os temores de seus clientes — era o futuro que estava sendo vendido e, mais, anunciado por uma voz tão calma, tão segura de si, que não havia como negar que tudo seria bom a partir dali, que tudo teria um final feliz e que, enfim, todos saberiam o que realmente está por trás desta confusão.

Era o que a vizinhança sabia à distância, quando ele ia de uma casa para a outra, ficava cerca de meia-hora, tomava um café e comia um bolinho de fubá, depois ia embora quando o sol já sumira e o vento da noite já maltratava os arbustos e as flores. Depois de muito tempo, ninguém soube o que dizer sobre o que deveria acontecer na casa de Simone ou na de Manoela. Ninguém sabia de nada. O que pode ser dito é através de fragmentos, conversas despedaçadas, frases desconexas, sentimentos mal articulados, às vezes nem sequer expressos. A única coisa da qual se tinha certeza era o vídeo das duas amigas, a princípio conversando como se nada tivesse acontecido e, logo depois, Simone jogando uma maçaroca considerável de papéis, puxando o cabelo de Manoela para depois pisoteá-la sem dó, entrecortando a coisa toda com gritos que misturavam vitória, regozijo de desgraça e ódio, muito ódio — “Donaldo é meu! Ele é meu! Só meu! Donaldo é meu!”.

O nome dele era algo tão incomum e, para elas, muito vulgar: Donaldo. Quem o batizou não o queria como filho, pensou Simone, assim como Manoela, mas de outra forma — um homem que nunca foi amado. Fixaram-se no rosto viril, no topete ondulado, nos olhos amendoados que garantiam um futuro cheio de doçura para a humanidade. A prova de que ele precisava de alguma ajuda — pelo menos, era o que pensaram as duas, sempre cada uma em sua casa — confirmou-se quando observaram discretamente que havia resíduos de caspa nos ombros dos ternos escuros que usava sempre durante as visitas. Não eram resíduos grossos, muito menos provocavam nojo; contudo, estavam , atrapalhando todo o conjunto. Ele entrou em suas casas, sentou-se nas salas de estar, tomou o cafezinho e comeu o bolinho, conversou amistosamente com cada um dos parentes das meninas — no caso de Simone foi muito divertido porque o velho Gerson não parava de convidá-lo para uma pescaria e ele ficou visivelmente incomodado, repetindo que não gostava de peixes — e depois começou a falar sobre o futuro que sua bíblia daria a quem a comprasse e a quem começasse a lê-la com devoção. Para Simone, tudo aquilo era uma bobagem sem tamanho; o importante ali era o topete, eram os pontos brancos nos ombros. Já Manoela mostrava algum interesse sobre o que lhe era apresentado, mesmo com a vontade irracional de morder a ponta daquele queixo. Controlou-se a muito custo.

E ficou assim por mais quatro visitas — sem saber que sua melhor amiga também tinha o mesmo privilégio. Na quinta vez na casa de cada uma, elas notaram que havia algo estranho no seu caminhar: ele claudicava. Após alguns minutos em que escutaram sobre a bondade inerente da palavra da Bíblia, de como o mundo não estava preparado para entendê-la, Manoela e Simone divagavam (cada uma ao seu modo e em suas respectivas residências) sobre aquela maneira esquisita de andar, qual teria sido o motivo, realmente o mundo estava cheio de coisas incompreensíveis, entre elas aquele andar, aquela caspa, aquele topete e aquele queixo. Quando houve uma pausa na declamação das razões pelas quais o mundo se encontrava de cabeça para baixo, Manoela e Simone se aproximaram de Donaldo — cada uma ao seu modo, é claro, a primeira de forma um tanto abrupta, a segunda uma pouco mais sutil, mais sinuosa –, colocaram o dedo indicador entre seus lábios (cada uma ao seu modo, é óbvio)— Manoela fez isso com o direito enquanto Simone usou o esquerdo –, pediram-lhe para ficar calado e perguntaram:

— Por que você anda assim?

Independentemente de quem fizesse essa mesma pergunta e fosse lá em qual casa se encontrasse, parecia sempre que Donaldo já tinha a resposta na ponta da língua — ou melhor, na ponta dos dedos, uma vez que ele imediatamente se afastou de cada uma das moças (a seu modo, é claro), foi para o lado oposto das respectivas salas de estar e, enquanto recuperava o fôlego e recomeçava a falar sobre como o mundo tinha as suas armadilhas e que, sim, nunca estávamos preparados para elas, dobrava a barra das calças que vestia e mostrava pouco a pouco que, no lugar da perna direita, havia uma barra de metal cromado que começava do sapato de couro preto e ia até a base do joelho. A partir daí, Manoela e Simone — cada uma a seu modo, por certo — não desgrudaram o olho dos movimentos feitos por Donaldo e cada palavra dele tornou-se então um cântico encantatório, um mantra no qual elas podiam se perder à vontade, numa submissão que sequer deixava brechas para respirar, e assim, sem dúvida, minha amiga, continuava a dizer o vendedor de bíblias (para cada uma que só tinha ouvidos para ele), o mundo continuará dessa forma, com sua lógica implacável, até que o final dos tempos consuma a todos nós, desta vez não com uma explosão, como todos esperam, e sim com um lamento inaudível, sem alarde nenhum, e todos repentinamente perceberão que estamos presos, na própria jaula que nos foi oferecida como libertação, uma jaula onde tudo é permitido e onde todos estão livres para fazer o que quiserem, até o momento em que esta liberdade será cobrada e ninguém terá mais nada para devolver porque nada tinha sido entregue de mãos beijadas e pelos nossos lindos olhos. Donaldo retirou a barra de metal, mostrou a cada uma (ao modo dele, sem dúvida) um toco pendente, inerte e rapidamente colocou o cano de volta à base do joelho, um clique mecânico avisando que ali havia de novo uma perna, o seu sorriso benevolente acompanhado de uma fala agridoce: “Veja, não se preocupem, tudo está no seu lugar exato!”.

A imagem do toco de perna depauperado não saía das mentes de Manoela e de Simone quando o orgasmo finalmente chegava. Foram dez visitas nas casas de cada uma, todas com direito a declamações sobre a Bíblia e sodomias bem executadas (ao modo delas, que fique claro). Sempre ao final, elas pediam para ver o que sobrara da perna — e Donaldo sempre perguntava porque insistiam nisso e elas sempre respondiam a mesma coisa: “Porque mostra que posso cuidar de você”.

Não estavam mentindo. Mas como costuma acontecer nessas situações em que as pessoas se impõem missões impossíveis, talvez para provarem a si mesmas que finalmente se tornaram adultas ou auto-suficientes, se ambas afirmavam (não entre elas, óbvio, afinal não podiam, por enquanto, cada uma ao seu modo, trocar confidências sobre o que ocorria em suas respectivas vidas) que cuidariam de Donaldo, esqueceram-se de se perguntar quem seria o responsável por cuidar delas. No caso de Manoela, seus pais eram muitos fracos de caráter para cumprir esta função; e afinal, ela achava que quem poderia ajudá-la nisso era sua melhor amiga, que, por sua vez, já tinha um guardião que a acompanhava desde a infância e não gostava da freqüência com a qual o vendedor de bíblias aparecia em sua casa — o velho Gerson.

Claro que a implicância começou quando Donaldo se recusou a participar da pescaria; homem que é homem não recusa pescar um peixe, dizia o ancião para quem quisesse ouvir, e assim a vizinhança começou a prestar mais atenção no vendedor de bíblias que, agora sim reparavam, caminhava de maneira esquisita, não é mesmo? Um dia ia à casa de Simone, no outro ia à de Manoela. Não seria uma mera coincidência? Um dos vizinhos, amigo de pescaria do velho Gerson, resolveu tirar a dúvida e, enquanto disfarçava cuidar do jardim ao lado da casa de Manoela, subiu como um ladino o muro que dividia os terrenos e viu, pela fresta da janela, Donaldo montado nas costas da melhor amiga da neta do velho Gerson.

A informação chegou rapidamente aos ouvidos do pioneiro. Naquela mesma tarde, chamou Simone. Perguntou o que tinha de perguntar. A neta não mentiu, assumiu o relacionamento (assim ela o chamava, a seu modo), afirmou que queria cuidar de Donaldo pelo resto de sua vida. Enquanto a escutava, o velho Gerson teve um vislumbre do futuro: Donaldo disseminando-se como um vírus, com o poder de escolha entre duas moças que sempre estiveram sob sua tutela, educadas para serem especiais, muito especiais e ele não podia permitir isso, não podia. Afinal, dedicava um considerável tempo para tornar Manoela, aquela coitada, alguém que ficasse no mesmo patamar de sua neta, pois se era o guardião de uma, seu domínio tinha de se estender para a grande confidente de Simone. Aquele bairro era o seu território. Ali tudo estava no seu lugar exato. Todos eram buona gente.

Ele continuou a ouvir as declarações de Simone. Gargalhava por dentro. Estava na hora de ensinar à netinha como o mundo funcionava.

— Simone, pare de falar…

— Mas vô…

— Cale a boca e escute o que vou te dizer.

E ela escutou. Primeiro subiu um gosto viscoso, amargo e ácido que veio das entranhas do estômago e foi para a boca sem nenhuma intermediação; depois, um véu vermelho cobriu seus olhos e a língua ficou paralisada. Seu corpo também não se mexia mais. Teve a intuição de que seu avô se divertia com aquela situação. Alguns minutos se passaram antes que ela lhe fizesse a seguinte pergunta:

— O que eu devo fazer?

Foi um plano realizado à perfeição. Dois dias depois, Simone ligou para Manoela:

— Amiga, quero te ver. Você pode vir aqui?

— Posso sim, amiga!

Era uma tarde fresca, sem sol, algumas lufadas de vento. Antes do horário combinado, Manoela resolveu ir à academia, fazer um pouco de ginástica. Quando chegou à casa de Simone, os cabelos suados nas costas a incomodavam um pouco. Improvisou um rabo de cavalo. Apertou a campainha. A amiga atendeu sorrindo:

— Oi, como está?

— Estou bem — e você?

— Estou ótima.

— Senta aqui. Quero conversar com você sobre uma coisa.

— Sobre o quê?

Manoela notou um bloco grande de papéis em cima da mesa. Havia uma fagulha de excitação nos olhos de Simone que ela nunca vira antes.

— Como estão as coisas do coração?

— As coisas do coração?

— É, os amores, as paixões que não controlamos. Essas coisas que desconhecemos. Faz um tempão que não falamos sobre isso.

— Puxa, é mesmo. Bem, eu tinha uma coisa para falar contigo.

— É mesmo?

— Precisava desabafar, sabe?

— Sei…

— Sabe?

— Claro que sei. Eu sei de tudo, Manoela.

É a partir daí que as coisas começaram a pegar fogo, diziam as pessoas que já tinham memorizado o vídeo como se isso fosse a única coisa a se fazer. Simone alegava que sabia de Donaldo e Manoela; esta, prestes a se confessar há por poucos segundos, recuou espantada e negou; Simone insistiu e, pouco depois, começou a ler os e-mails de amor e paixão trocados entre os dois; Manoela ficou constrangida ao ouvi-los, mas mesmo assim continuou a negar (e talvez se perguntou se Simone também não teria recebido os mesmos e-mails, o que aumentou ainda mais o constrangimento); a melhor amiga parou de ler as mensagens e somente fitou Manoela, esperando por uma resposta. Logo depois, jogou a pilha de papéis na cara dela, arremessou uma cadeira contra seu corpo, puxou-a com força pelo rabo de cavalo e pisoteou-a enquanto gritava que Donaldo era dela, só dela, só dela.

Tudo isso chegou aos olhos da vizinhança porque Simone ouviu o conselho do velho Gerson e gravou toda a conversa em uma câmera portátil escondida atrás da estante onde ficavam alguns quadros de santos e algumas madonnas. Depois, o próprio Gerson pediu para que alguns funcionários da sua empresa do que antes se chamava “processamento de dados” invadissem a caixa de e-mails de Manoela, seqüestrando assim as juras de amor entre ela e Donaldo, além de espalhar o vídeo naquilo que muitos resolveram agora chamar de “a nuvem” — e lá, minha neta, explicou o velho, nós destruiremos a sua amiga, a transformaremos numa renegada para que sirva de exemplo e, como o país inteiro testemunhará a sua queda, todos saberão que traições como aquela não serão aceitas no bairro. Pois ali todos eram boa gente e tudo estava no seu lugar exato e assim deveria ser por um bom tempo.

O que ele não esperava foram os murmúrios, os ruídos, os zumbidos — e os risinhos. Quando alguém lhe mostrou o vídeo repetidas vezes dentro de um bar que sempre freqüentava e lhe perguntou se uma delas era a sua neta, Gerson pressentiu que o futuro não seria como vislumbrara. Reprisavam o momento em que Simone pisoteava Manoela, muitos começavam a gargalhar e aumentavam as piadas conforme percebiam que o velho demonstrava um outro sentimento que nem sequer previra em seu plano: medo. Medo de saber que alguém do seu sangue era capaz daquilo. Medo de saber que ele era responsável por todo aquele circo. Medo de concluir que aquilo tinha sido o seu auge e que agora só havia a descida sem volta.

De fato, foi uma descida sem volta e muito, muito rápida. Teve um ataque apoplético em plena missa de domingo, justo no momento em que o padre entregaria a comunhão. Já havia algo errado com ele logo pela manhã, quando acordou e percebeu que seus olhos tinham perdido o foco, não conseguiam mais ver as coisas nas cores que deveriam ter, mas insistiu que iria à missa de qualquer jeito, não, não podia perder isso em hipótese nenhuma, pensou assim até perceber que estava deitado no chão da igreja e que jamais levantaria novamente. O hospital depois informou que esses eram os sintomas evidentes de um aneurisma que se rompera sorrateiramente. Poucas pessoas foram ao enterro e as que vieram demonstraram o mesmo sorriso malicioso das semanas anteriores e, se pudessem, exibiriam o vídeo com as duas meninas em pleno velório, a título de pura gozação, só para provar entre eles que aquilo tinha sido a verdadeira obra-prima de um pioneiro dedicado a manter a ordem no bairro.

Donaldo, o vendedor de bíblias, nunca mais apareceu após o vídeo se tornar manchete nos jornais e nas televisões de todo o país. Alguns rumores informaram que muitas mocinhas e muitas viúvas tiveram o prazer de compartilhar a cama com alguém de descrição similar; mas eram apenas rumores e nada mais. Quando o sol volta a arrefecer no final da tarde e a brisa da primavera dá mostras de sua passagem, uma ou duas vizinhas têm a impressão de que viram um homem elegante, de terno cinza ou preto, surgir nas casas ao lado — e o coração volta a palpitar, como se estivessem na expectativa de uma segunda vinda que, no fim, sabem que jamais acontecerá.

Um destes corações era o de Simone. O vídeo deu-lhe algum destaque no resto da nação. Foi a programas de televisão, deu entrevistas sobre amizade e traição, até participou de alguns concursos de luta-livre feminina, todos devidamente arranjados e nos quais anunciavam o golpe mortal do “pisoteio” como sua marca registrada. Depois fez um ou dois papéis em uma novela e um filme pornográfico — a sua especialidade era a sodomia prolongada. Voltou à vizinhança, isolou-se na casa deixada como herança pelo velho Gerson e, todo final de tarde, espiava a rua com um binóculo e misturava as lembranças de Donaldo chegando no bairro pela primeira vez e as de seu avô alardeando a quem quisesse ouvir que, sem sombra de dúvida, ali eram tutti buona gente.

E é claro que ninguém soube muito bem o que aconteceu com Manoela. Sobre ela sequer existem rumores, murmúrios, sorrisos. Sabe-se apenas que, devido ao pisoteio de Simone, ficou paraplégica. Seis semanas depois do vídeo se tornar a nova mania nacional, desapareceu sem deixar rastros. A família também foi embora sem nenhum aviso. A casa ficou abandonada e, com o passar dos tempos, todos esqueceram que alguém morou ali. Agora, algumas crianças brincam no terreno baldio que antes era o quintal onde Simone e Manoela conversavam sobre essas coisas desconhecidas do coração; depois, elas crescerão e usarão o interior da casa, completamente empoeirada, para fumar, beber, jogar e ver alguns vídeos considerados impróprios pela vizinhança, entre eles, quem sabe, o das duas amigas que puxaram os cabelos e se pisotearam, sempre acompanhados pela trilha sonora dos sorrisos maliciosos e das gargalhadas escandalosas. A prova de que ali, mais cedo ou mais tarde, tudo estará no seu lugar exato.

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Martim Vasques da Cunha
Martim Vasques da Cunha

Written by Martim Vasques da Cunha

“My task which I am trying to achieve is, by the power of the written word, to make you hear, to make you feel — it is, before all, to make you see”. J. Conrad

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